domingo, 11 de abril de 2010

CARLOS DUGOS RESPONDE A JORGE DE MATOS

I – ARTE REAL

JORGE MATOS:  Na actual época turbulenta de charneira, como é que, como pintor, percepcionas o corrente estado evolutivo da Arte, enquanto veículo visionário da transmissão de mensagens?

CARLOS DUGOS: Assumir um figurativismo elaborado, numa época quase uniformemente vocacionada para expressões conceptuais e para um tratamento da figuração displicente ou mesmo desfigurante, pode parecer á primeira vista um anacronismo. No entanto, o acto de ver não é independente da função de compreender e esta não pode ser alcançada à primeira vista. Infelizmente, a educação do olhar parece cada vez mais votada à fugacidade de primeiros e únicos olhares, numa tendência progressiva para o simples vislumbre do exterior e do formal, sendo o conteúdo – caso existia – relegado para especialistas, capazes de interpretar culturalmente as imagens.
Ao mesmo tempo, a herança historicista procura ver em toda a obra de Arte um documento ligado a uma época, como se fosse função principal da Arte a submissão a padrões do momento, em muitos casos castradores de uma expressão autêntica e pessoal. A colectivização dos conceitos acarreta a entropia do acto artístico; a pobreza genérica da arte actual deve muito a esta situação anómala, em que, por principio, são os agentes periféricos, críticos, historiadores, teóricos, conservadores e marchands, a imprimirem a orientação aos ateliers, ficando o artista na situação de fornecedor de mão de obra especializada para operações, cultural e financeiramente especulativas, tendo por base a Arte.
No caso presente. A resolução destes problemas tem passado pela marginalidade estratégica, conseguida à custa de um isolamento que, não revestindo formas autistas, evita sistematicamente o mundo das generalidades artísticas, procurando comunicar com os santuários onde ainda sobrevivia uma consciência metafísica, apta a compreender e aceitar um conceito de obra identificado com o sentido da Arte Real ou Opus Regia. E, se uma certa dose de solidão pode tornar-se dolorosa, a verdade é que ela permite uma concentração mais acentuada, nos valores e princípios que norteiam uma linha temática de investigação e uma maior autenticidade na adopção de linguagens plásticas adequadas.

JORGE MATOS: Parece-te que a Realidade ou Realeza intrínsecas da Arte dependem de um compromisso relacional entre o método e o tema pictóricos?

CARLOS DUGOS: Com efeito, um determinado conteúdo temático exige uma linguagem plástica apropriada, para se exprimir com a conveniente clareza e objectividade. Em pintura, como em qualquer arte, as melhores ideias carecem de um léxico e de um cânone que as não deturpe no momento da execução, por deficiência ou por excessos.
Essas “inspirações” exprimem-se idealmente, se forem acompanhadas na acção realizadora por uma forma que as exalte. O sincronismo entre o que se pensa e o que se faz depende da descoberta do como fazer aquilo que se pensou; e, naturalmente, esta dialéctica desenvolve-se contrariamente às frequentes tendências, repetidamente divulgadas por cultores de uma arte actual, em que a ideia inicial é parcial ou completamente subvertida durante a execução.
Se a ideologia é por natureza filha de Prometeu, a Arte consagra-se na paternidade de Hércules. Se o impulso titânico que ousou subtrair o fogo aos deuses se saldou num afastamento progressivo desse fogo ou do que ele representa, o impulso heróico fabricou o seu próprio fogo igualando-se com isso aos deuses, sem revolta, em pleno acto de realidade, de acordo com as possibilidades contidas na prática de uma Arte Real.

JORGE DE MATOS: Inserida hoje a Arte num contexto comercial, como produto de mercado de oferta realizado para um determinado público de procura, como é que encaras neste momento a sua função comunicativa e construtiva da sociedade contemporânea?

CARLOS DUGOS: Pintar como se gosta e quer pode parecer uma arrogância, perante a obsessão contemporânea pelas acções de grupo, tendentes a encontrar consensos mais ou menos entrópicos. E se a questão da autora se dilui, quando o autor se vê a si mesmo como um mero intérprete dos impulsos que lhe chegam de algures, o condicionamento desses impulsos aos cânones do momento ou aos critérios grupais afigura-se um acto de abdicação, em tudo lesivo da responsabilidade assumida pessoalmente em relação aos impulsos inspiradores.
Pintar como os outros gostam e querem, pode parecer um acto de dádiva humilde, mas conduz ao alinhamento com a intolerância instituída pelos gostos massificados. Por estranho que pareça, do mesmo modo que, a seu tempo, o academismo intolerante expulsou os primeiros e tímidos ensaios da modernidade, as actuais “academias” uniformizantes expulsam quaisquer ensaios, tímidos ou não, cuja natureza não encaixe ideologicamente numa noção de progressismo contestatário, como se essa tendência fosse a quinta essência da cultura contemporânea.
O elogio cego da inovação parece ser uma forma obscura de culto, estribado num qualquer dogma impositivo; a exaltação da revolta contra a ideia constitui-se como pureza ascética ou sinal inequívoco de bondade. No entanto, o tempo avança em espiral e o ontem terá de passar ciclicamente, embora travestido por novas condições, no amanhã mais moderno, do mesmo modo que os revoltosos de hoje sofrerão a revolta dos que vierem a seguir.
Neste cenário de grande pobreza intelectual e de maior confusão, o melhor será certamente optar por uma surdez e cegueira voluntárias para, em sentido introspectivo, buscar no mais profundo de si próprio, como num espelho, a imagem original há tanto esquecida e escutar, como em sonoridade aquáticas, o cântico difuso da vida, quase completamente perdido.

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