quarta-feira, 7 de abril de 2010

ALQUIMIA E PROCESSO PICTÓRICO




Carlos Dugos
Pedra Cúbica Hermética
óleo s/ tela
116x81
1994


ALQUIMIA E PROCESSO PICTÓRICO
CARLOS DUGOS

....Os temas consagrados no corpo doutrinário, simbólico e técnico da Alquimia são praticados no dia a dia por todos nós, incluindo aqueles que ignoram completamente a existência da arte hermética.
Dado que ela se estrutura sobre as coisas da natureza e a natureza das coisas, de um modo universal e absoluto, quaisquer pensamentos ou actos humanos, quaisquer factos biológicos ou astronómicos expressam dados que, por analogia, coincidem com princípios alquímicos.
Dado que ela se estrutura sobre as coisas da natureza e a natureza das coisas, de um modo universal e absoluto, quaisquer pensamentos ou actos humanos, quaisquer factos biológicos ou astronómicos expressam dados que, por analogia, coincidem com princípios alquímicos.
Não têm aqui lugar exemplos detalhados, limitando-nos a convidar quem tiver da Arte Real um conhecimento genérico, a experimentar traduzir para símbolos ou conceitos herméticos as questões mais banais ou mais relevantes da realidade. Será essa a forma privilegiada de demonstrar o que acima se afirmou.
No presente caso, o nosso objectivo consiste em estabelecer algumas analogias entre o exercício da Arte pictórica e os temas alquímicos correspondentes.

Por origem, a pintura é uma Arte tradicional. As técnicas gráficas e cromáticas de representação, produzindo como que “duplos” das entidades envolvidas num tema, foram arcaicamente associadas à magia operativa, especialmente no que respeita à “evocação”. Com efeito, representar é evocar; e, se em certos casos tal prática produz “duplos” de duração efémera - exemplo das modalidades sonoras e mímicas - na pintura, tal como em outras Artes com suporte plástico, a durabilidade da evocação prolonga-se pela vida, mais ou menos longa, desse suporte. Entra-se assim no domínio da iconologia ou seja, o conhecimento da Arte de “espelhar”, em que a reprodução reflecte o original.
O ícone é, pois, o espelho de algo; no entanto, para que a representação alcance as propriedades reconhecidas no modelo, há que manter a fidelidade às características deste, não só na semelhança visual mas, sobretudo, na simbologia gráfica e cromática que lhe é própria, de modo a que, nos planos mais sensíveis da realidade, a coincidência entre original e cópia, atinja um elevado grau de analogia.
Por exemplo, a Arte do ícone, tal como permanece na tradição católica ortodoxa, obriga a cuidados especiais na pintura sagrada, particularmente na obtenção e preparação de pigmentos, técnica que se mantém em regime de segredo, unicamente transmitida por via iniciática, de mestre a discípulo. E isto, porque a fidelidade à cor canónica restringe a paleta a um conjunto de cores imutáveis, somente conseguidas mediante pigmentos únicos e de origem exclusiva, entendendo-se que só esses e não outros, são susceptíveis de se identificarem com o fim temático a que se destinam e a produzirem as tonalidades simbólica e ritualmente actuantes, que mais se aproximam do modelo.
Falando-se de vermelhos e azuis, cores base de todo o cromatismo, a indefinidade de tonalidades é imensa; e sendo que cada cor corresponde a um princípio, as tonalidades obtidas pela sua mistura referem-se aos princípios nela participantes, tendo em conta a proporção em que aí se encontrem.

CORES PIGMENTOS PLANETAS E METAIS
A doutrina tradicional do Ocidente estabelece correspondências analógicas, indicando que as sete cores correspondem aos sete planetas da Astrologia e aos sete metais da Alquimia.
Convem assinalar que, nestes casos, tal analogia funciona mediante algumas adaptações. Não se organizando por modelo sistemático - como acontece com os postulados clássicos da ciência profana - mas constituindo-se de modo sintético, as doutrinas tradicionais aproximam o que é da mesma natureza arquétipa, sem a preocupação de um rigor absoluto nas correspondências. Tal preocupação seria de resto vã, na medida em que nada, na natureza, é perfeitamente coincidente, já que o mesmo princípio, quando expressado por modalidades diferentes, ou em diversos planos de realidade, apresenta ligeiras modificações que impedem as transposições literais.
Por exemplo, a “cor” negra, atribuída a Saturno e ao chumbo, não existe na paleta cromática; trata-se mesmo da ausência total de luz e cor, ou seja a sua vibração está para além da gama cromática perceptível pelo sistema ocular humano.
Quando em Alquimia se fala do nigredo refere-se o produto da uma carbonização, associada naturalmente à negrura, eventualmente coincidente com os vários negros das oficinas de pintura, todos eles oriundos de carbonizações, sendo o mais famoso obtido pela queima do marfim.
Porém usa-se, na terminologia hermética, a designação de asa de corvo para definir a coloração da substância carbonizada e, aqui, verifica-se uma aproximação à realidade cromática perceptível, já que como dissemos, o negro não se “vê”. Em sua representação, descobriremos um azul tenebroso, obtido pelo Indigo mais expresso e profundo com eventuais brilhos onde se manifestam as cores do Arco-Íris. Essa asa de corvo, versão mais sublime do nigredo, já não é um simples conceito de trevas absolutas, mas a treva promissora das etapas seguintes, correspondente à radiação próxima do ultra-violeta, com os seus “negros” violáceos, tão bem conhecidos dos pintores e que lhes serve para dar corpo e espaço às zonas mais obscuras da obra.
Igualmente, o branco não existe; também ele fica aquém da percepção visual. Para o observador mais atento, nem a mais pura neve é “branca”, no sentido absoluto do termo. Conhecida como é a capacidade dos cristais para refractarem a luz, transformando-a em cores, por intervenção da sombra, será pouco convincente que um grande conjunto de cristais, como é um campo nevado, possa ser, em rigor, considerado branco. Um olhar mais próximo e atento descobrirá que essa aparente brancura é formada por milhões de partículas cromáticas, brilhando na cores do Arco-Íris.
De acordo com a analogia tradicional entre o branco, a Lua e a prata, o albedo, ou obra ao branco, diz respeito, mais propriamente, ao regime da prata. Ora a prata jamais foi branca, como a Lua o não é, mesmo no máximo esplendor da sua rotundidade. Também neste caso, como quanto ao negro, a brancura não passa de um conceito.
Correspondendo a um espelho luminoso e liso por fora, tenebroso e grosseiro por dentro, a prata exalta a exteriorização da luz, mediante a oposição da treva; a luminosidade extrema de uma gota de mercúrio, manifesta-se devido à densa obscuridade que vive no seu interior. Neste tipo de corpos a luz não é absorvida, antes reflectida, apresentando por isso as várias modalidades cromáticas envolventes que nele se vêm espelhadas.
Para o pintor avisado, todo o “branco” será vivo e vibrante, como o deve ser todo o arauto da luz e terá de reflectir, embora da forma mais subtil e ténue, as cores envolventes, de preferência as do – sempre ele – Arco-Íris.
Há séculos que os pintores usam os carbonatos de chumbo quando pretendem os brancos mais luminosos; no entanto os artistas não devem esquecer que, sendo o chumbo filho metálico de Saturno, a alvura com que aí se assinala a suprema realeza divina, tende sempre à rápida oxidação, ou não fora aquele deus vítima da sua própria condição temporal, sobretudo enquanto Cronos, entidade votada à oxidação do tempo, à perda de brilho, à velhice e ao exílio.
Existem pequenos segredos para conservar, com alguma frescura e durante séculos, a limpidez dos carbonatos de chumbo, tendo-se sobretudo em atenção o medium interventor. O erro maior, em que reincidem muitos coloristas, é o de misturarem o branco de chumbo, vulgarmente chamado de prata, com outros pigmentos, na intenção de aclararem os tons. O estigma da velhice plúmbea que Saturno suporta razoavelmente na solidão, quando associado a outros metais ou planetas, revela-se rapidamente destrutivo, produzindo neles uma corrosão súbita e acentuada.
Os cuidados a ter nestes casos são extensivos aos cromatos de chumbo que, manifestando o oiro virtualmente existente no metal de Saturno, produzem os inigualáveis amarelos, ditos de cromo, aptos a transmitirem cromaticamente o esplendor solar. A mistura de tais aristocratas com pigmentos mais modestos é mutuamente destrutiva, revelando-se aí a face demoníaca do Sol que tudo queima, sendo de aconselhar o uso do amarelo de cromo puro como base, protegendo-o após a secagem com um bom isolante transparente, depois do que, ao modo de velatura, se pode cobrir com ténues véus de outra cor, obtendo-se pela transparência o que numa mistura directa seria catastrófico.
Ainda sobre os brancos de oficina, pode indicar-se o de zinco, na forma de óxido. Sendo o zinco da parentela do tradicional estanho, atribuído a Júpiter, não é de estranhar uma tendência inata para “azular”, por coerência com a cor emblemática do Rei dos deuses. Esta espécie de metamorfose determina uma tonalidade baça. No entanto, misturado com cores sólidas é relativamente estável.
Modernamente, o dióxido de titânio congrega em si as melhores qualidades dos outros brancos, sendo aconselhável a sua utilização em qualquer caso ou mistura. Embora também se trate aqui de um familiar do estanho, o titânio mantem inalteradas as qualidades reais de Júpiter, apresentando-se, por isso, sereno e estável.
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Depois da carbonização mortal do nigredo; depois das purificações sucessivas conduzindo ao albedo, a matéria alcançada entra num regime de manipulação particularmente intenso, última fase da obra a caminho do rubedo.
As múltiplas variedades de vermelho, com que os mestres descrevem a coloração da substância assim produzida, evocam de pronto a presença guerreira de Marte, quer devido à violência dos processos usados para aí se chegar, quer à natureza que, então, anima a nova pedra.
Em pintura, estamos, neste caso, perante os óxidos de ferro – vulgo ferrugem – obtidos pela acção húmida do elemento líquido sobre o ardor marcial.
Estes pigmentos revelam-se arrogantes e agressivos, de acordo com a sua origem e natureza. Ares, o Marte helénico, governa o signo astrológico de Aries, o carneiro impetuoso, cuja cabeça, em bronze, constituía a peça de percussão do aríete, artefacto militar com que se arrombavam as portas das fortalezas, durante os assaltos.
Do mesmo modo que o pintor disciplina e conduz o potencial dessa agressividade, para obter dos vermelhos a docilidade promissora de um Agnus Dei, o alquimista usa a extrema vitalidade manifestada pelo espírito do ferro e elabora a Obra durante o signo astrológico do Carneiro, governado por Marte, substituindo as hordas de milicianos prontos ao combate, pelos rebanhos pacíficos e fecundos.
Do mesmo modo que o ardor militar conduz o herói à vitória, sendo-lhe então imposta a coroa, o ardor da fé leva o crente à dádiva heróica da vida, em nome da sua crença, sendo-lhe então conferido o emblema vegetal da palma. O mesmo princípio, representado por Marte guerreiro, conduz a sua prole, seja a ela a das espadas que ousam, ou a da espiritualidade irredutível, via esta que é designada por um vocábulo saído directamente do nome do deus da guerra – o martírio.
Existem outros vermelhos não ferrosos. Por exemplo, o cádmio, sendo uma espécie de zinco pertence à casa dos estanhos, governados por Júpiter, Rei dos deuses. Neste caso a coloração vermelha não vem por via guerreira directa, mas pela sua sublimação na forma real. Em pintura, os sulfuretos mais ou menos puros, deste metal, produzem belos vermelhos e amarelos, de grande luminosidade, mas com tendência para “azularem”, tornando-se baços, quando misturados com outros pigmentos, em particular os que produzem brancos.

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Negro, branco e vermelho constituem as cores base da Obra, já que todas as outras são modalidades específicas ou misturas destas três. Se observarmos a fenomenologia das cores a partir da doutrina tradicional dualista, em que a realidade absoluta, para manifestar-se, tem que cindir-se num par de opostos, teremos presente o conceito de Goethe, segundo o qual, genericamente, a cor provém da síntese entre os efeitos da luz e da treva. Várias experiências ópticas podem demonstrar esse postulado.
Assim sendo, existem duas “famílias” cromáticas: a oriunda da treva – os azuis e a oriunda da luz – os vermelhos. Com efeito, a luz vista através da treva apresenta-se vermelha - como o demonstram certos pôr-de-sol espectaculares - enquanto a treva, vista através da luz se torna azul, tal como se pode constatar, ao olhar-se o céu, negro por natureza, como todo o espaço exterior à Terra, tingido de azul pela luminosidade da atmosfera que aí se interpõe.
Deste modo - e embora pareça estranho – podem considerar-se certos amarelos, particularmente os de cádmio, como uma modalidade de vermelho, ou os verdes oriundos dos ftalocianinos de cobre, como modalidades de azul.
Entre amarelos e vermelhos, passando pelo conceito de laranja, que tanto pode ser um amarelo mais tinto como um vermelho maios claro, existe uma indefinidade de nuances, todas elas oriundas do vermelho. Igualmente, entre azuis e verdes, passando pelo tom chamado turquesa, que tanto pode ser um azul esverdeado como um verde azulado a gama é vasta, sendo que aí impera, como base, o azul.
No limite extremo dos vermelhos encontraremos um amarelo ácido, muito claro, por vezes designado por limão – cádmio, tal como no limite do azul surgirá um tom cerúleo muito claro– ftalocianino de cobre. Do encontro, ou mistura, entre estas duas estirpes aparece, como síntese, um verde vibrante e particularmente luminoso; dele não se pode dizer que pertence aos vermelhos ou aos azuis, porque será como um crioulo, em que se misturam dois sangues, duas expressões diametrais de dois princípios.
E esse verde é, afinal, o meio termo de equilíbrio entre o Céu branco, em pura luminosidade, correspondendo cromaticamente ao vermelho e a Terra, negra, em completa treva, representada na manifestação sensível pelo azul. Trata-se, neste caso da cor central da natureza verdejante e fecunda, vivendo entre o elemento aéreo da atmosfera celeste e o elemento ctónico da densidade terrestre. Esse verde é a cor emblemática de Vénus, patente na maçã que a deusa ostenta; nele revive, em permanente recomposição, a vida, ciclicamente regenerada ou “re-gerada”, contendo em si os elementos uranianos e telúricos, consubstanciados numa nova unidade, representada pela manifestação do ser.
Como ultima nota, sobre este aspecto, não esqueçamos que este verde encontrado pela síntese entre o princípio das trevas e o da luz, corresponde, de outro modo e noutro grau, à púrpura, uma modalidade de violeta, obtida a partir da mistura do azul e do vermelho, respectivamente aludindo à verdade e ao amor, na emblemática iconográfica. Ainda relativamente ao papel regenerador de Vénus, lembremos que, se o manto da Virgem Maria é azul, a sua túnica é vermelha.

VOLATILIZAR O FIXO – FIXAR O VOLÁTIL

A dualidade, que anteriormente definimos como sendo o mistério, ou o processo central da manifestação, continua a servir-nos de condutor, na compreensão dos mecanismos da Obra de Arte, seja ela pictórica ou alquímica.
Uma manivela simples, em acção, produz um efeito giratório a partir de duas “viagens” complementares. A um movimento circular de cima para baixo, do zénite ao nadir pela direita, opõe-se um movimento circular, de baixo para cima, do nadir ao zénite, pela esquerda. Isto, naturalmente, seguindo-se a direcção dos ponteiros do relógio. Procedendo-se em sentido inverso, sobe-se pela direita e desce-se pela esquerda, sendo o efeito geral o mesmo. Estas duas “viagens” ou ciclos produzem, por movimentos sequencialmente opostos, um terceiro movimento - síntese dos anteriores – este, circular linear e contínuo.
Os sistemas duais, complementados numa síntese, estão patentes em todas as estruturas do real, com maior ou menor evidência, podendo mesmo avançar-se que o processo da manifestação é, em todos os casos, marcado por este mecanismo. A acção recíproca, desencadeada entre um par de opostos, gera a manifestação, apresentando-se esta como a síntese das polaridades interventoras.
Exemplos constantemente evocados, como negativo-positivo; macho-fêmea; luz-treva; inspiração expiração - e tantos outros que, por menos evidentes não deixam de ter igual importância - de pouco valem, quando a sua observação se limita a constatar a dualidade complementar, ou simplesmente antagónica, que os caracteriza.
A síntese dos contrários corresponde a um imperativo vital. A aparente repulsão pelo oposto revela-se como uma modalidade de atracção; e a cadeia de reacções permanentes e universais que essa atracção suscita constitui o modus operandi da realidade. O seco aspira ao húmido, como a Terra aspira ao Céu. O barro e o ser provêm da consumação dessas aspirações.
Tendo uma origem celeste e um destino terrestre, o Homem manifestado cumpre-se plenamente na integração unificada desta duplicidade. Faltando-lhe o espírito, ou faltando-lhe o corpo, faltar-lhe-ia uma das partes constituintes da sua natureza. Partes diferentes, em grau e qualidade, mas ambas veneráveis, se cada uma delas ocupar o lugar que lhe é próprio no conjunto da realidade. Partes opostas, decerto, sujeitas à regra da atracção, atrás referida e cuja reacção mútua produz como que uma unificação dos opostos, num terceiro termo.
Em simbólica geométrica, o Céu – assimilado ao espírito – representa-se pelo círculo e a Terra – assimilada ao corpo – por um quadrado. O produto reactivo destas naturezas opostas corresponde à figura da quadratura do círculo, imagem em que o quadrado parece arredondar-se e o círculo ganhar alguma angulosidade. Em Maçonaria, o compasso reporta-se simbolicamente ao Céu e o esquadro à Terra. A ascese iniciática do maçon tem por paradigma emblemático o compasso e o esquadro entrelaçados.
Esta mistura de duas naturezas antagónicas toma, alquimicamente, uma indefinidade de alegorias, símbolos e emblemas como, entre tantos outros, é o caso das bodas e do andrógino. No entanto, é no apotegma solve et coagula, que se encontra uma indicação precisa, quanto ao modo de operar sobre cada uma das naturezas opostas, para as afeiçoar reciprocamente, extraindo-lhes o carácter radical que apresentam em estado “bruto”.
Dissolver e coagular, volatilizar e fixar, expandir e contrair, expirar e inspirar, eis algumas associações que aproximam a intuição ao tipo de acções opostas - veja-se mesmo contraditórias – que a Arte hermética propõe como prática quotidiana e continuada por parte do adepto diligente.
Volatilizar o fixo será dar asas à pedra; impregnar de leveza o pesado; dar espírito ao corpo. Fixar o volátil será concentrar o que está disperso concretizar o abstracto; dar corpo ao espírito.
Estes dois movimentos opostos - recorde-se a manivela – tornam-se inúteis para a Obra, se forem realizados sequencialmente. Desde sempre, os mestres - os operativos como os especulativos - afirmaram que os dois movimentos se operavam num só gesto, ou seja, que a duplicidade é - aqui como em muitos outros casos – aparente, já que, ao fixar o volátil, se está simultaneamente a volatilizar o fixo, ou vice versa.
Também o pintor, quando se serve das tintas, para exprimir um tema, na tela, corporiza, aprisiona e torna “fixa” uma ideia que, por natureza, é incorpórea, livre e volátil. Simultaneamente e no mesmo gesto, ele subtiliza, liberta e torna volátil o corpo da tinta, por natureza inerte e pesado, no cárcere da sua condição substancial.
Nesta dupla acção, executada pelo artista num único movimento, invertem-se as polaridades conflituais, espiritualizando-se a matéria e materializando-se o espírito. Como síntese, fica a Obra, na qual pensamento e substância se encontram já indissoluvelmente integrados, numa verdadeira quadratura do círculo, bodas sagradas entre o Céu e a Terra, lugar de confluência entre as duas Jerusalém.

ENXOFRE, MERCÚRIO E SAL

Acerca do ternário alquímico Enxofre, Mercúrio e Sal podem indicar-se, muito sumariamente, algumas particularidades que estão presentes no acto de “criação” artística.
Existem modalidades indefinidas de ternários, cada uma delas especificando um dos múltiplos dispositivos oriundos da triplicidade. Infelizmente tornou-se prática comum, por parte de estudantes de simbólica mais precipitados, assimilarem, entre si, ternários que exprimem realidades completamente diferentes. É frequente deparar-se, por exemplo, com a identificação do ternário alquímico que aqui tratamos, com o ternário teológico Pai, Filho e Espírito Santo. Tais confusões, como sempre acontece nestes casos, impedem uma consciência efectiva e profunda dos temas tratados, pelo que vale a pena expor, brevemente, a diferença entre os ternários propostos a exemplo.
Com efeito, enquanto no primeiro caso temos dois termos opostos que se estabilizam num terceiro, numa fórmula que graficamente se pode representar por um triângulo com o vértice virado para baixo, no segundo, “ um só Deus em três pessoas distintas” teremos uma triunidade essencial e formal, em que todos os termos se equivalem, nenhum se opondo, nenhum estabilizando nada e, neste caso, teremos um símbolo gráfico na forma do triângulo equilátero, ele próprio estabilizado na tríplice unidade e, logo, assente num dos lados.
Continuando numa exemplificação geométrica, a acção do Enxofre, princípio ígneo, activo, central, celeste, pode representar-se por um traço vertical e a reacção do Mercúrio, princípio húmido, passivo, periférico e, de certo modo, terrestre, pode representar-se por uma linha horizontal. O ponto de encontro entre as duas direcções corresponderá à posição do Sal.
No entanto, para melhor elucidação do aspecto que aqui nos interessa particularmente, entenda-se uma circunferência com o ponto central marcado, sendo que, neste caso, o ponto corresponde ao Enxofre e a circunferência ao Mercúrio. O Sal estará, neste caso, num círculo intermédio entre o centro e a periferia.
A acção do Enxofre dirige-se ao Mercúrio, ou seja, do ponto central à linha periférica, ficando assim expresso o seu carácter centrífugo. A reacção do Mercúrio suscita um movimento da periferia para o centro, de acordo com o seu carácter centrípeto. A propriedade centrífuga do Enxofre prende-se com o sentido expansivo deste princípio, na sua qualidade de “suscitador activo” e viril espalhando à sua volta centelhas ou estímulos “espermáticos”. Por seu lado, o Mercúrio reage a tais estímulos do um modo centrípeto, aprisionando o seu conteúdo, encerrando em si e centralizando, de forma dir-se-ía uterina, feminil e fecunda a centelha suscitadora.
Com efeito o “tempo” solve é próprio do Enxofre, tal como o “tempo” coagula o é do Mercúrio. O “tempo” em que ambos se unificam, em simultaneidade, é o fluir da manifestação, representada aqui pelo Sal, produto das complementaridades em interacção.
Devido às limitações próprias da manifestação e ao grau secundário que lhe cabe, no conjunto da realidade, não existem nela condições para sofrer directamente a acção do Enxofre – princípio eminentemente espiritual. Neste caso, o Mercúrio desempenha uma das suas funções principais, como elemento mediador entre dois mundos, qualidade esta que lhe valeu, nas culturas clássicas, a designação de “mensageiro dos deuses”. Receber o estímulo ígneo, dissolvente e incorpóreo do Enxofre, dar-lhe humidade e comprimi-lo, preparando-lhe um “corpo” - Sal - susceptível de ser manifestado, eis o papel do Mercúrio, enquanto plano em que se reflecte a vontade do Céu.
Por outro lado, o Enxofre corresponde ao aspecto mais interior do ser, aquele que, no Homem, é habitado pela partícula divina, enquanto o Mercúrio corresponde ao exterior, ao meio envolvente, seja ele um meio anímico ou corporal.
O mecanismo da chamada “inspiração” artística é análogo ao processo acima descrito. Associado à acção do Enxofre, o estímulo inspirador, pela sua natureza ininteligível e pelo modo paradoxal como se exerce – recôndito e expansivo; particular e universal – necessita de um plano de reflexão que o apreenda e lhe outorgue forma perceptível, não propriamente ao modo de uma ideia mas de um sentimento nítido e específico. Essa definição, em termos humanos, da mensagem divina, que corresponde ao segredo sussurrado das musas, provém da acção cristalizadora e plasmante do Mercúrio, como entidade psíquica por excelência, preparando a mais pura abstracção, no seu caminho descendente, para o concreto e o corporal.
A ideia consequente a este processo inspirador, será o tema da Obra, seja ele conceptual ou simplesmente estético; e, se sob um certo aspecto o Sal se apresenta centralmente, como o produto da relação entre o Enxofre e o Mercúrio, sob outro ponto de vista, tão oportuno quanto o primeiro, é o Mercúrio que marca, pela sua natureza mediadora, o centro do percurso que vai do Enxofre ao Sal.
Finalmente, a Obra de Arte está acabada e o seu nome é Sal. O pintor revê-a longamente, encontrando sob o véu cristalino da sua aparência física, quanto nela há da acção original do Enxofre, simples sensação carecendo ainda de uma ideia que a expressasse. Descobrirá também os traços da reacção mercurial, a “substancializar” psiquicamente o conteúdo da mensagem celeste, decifrando-a em sentimento e ideia, proporcionando-lhe uma alma, para que pudesse tornar-se corpo.

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Na Alquimia como na pintura representa-se, embora em modalidades diferentes, a operatividade da Arte. E aqui o, conceito de arte distancia-se muito das definições que, sobre a matéria, disciplinas teóricas como a história e a crítica de arte contemporâneas convencionam.
Na verdade, a ideia de Arte para que apelamos, não se restringe a qualquer modalidade específica; antes corresponde à percepção de um mistério universal cuja expressão consiste em alterar a morfologia dos corpos em estado nativo, para os “resubstancializar” idealmente. Em conformidade, o conjunto da actos manipuladores, executados sobre a matéria da obra, constitui, a despeito de toda a divulgação, um segredo de magistério, oriundo no mistério sob a égide do qual se actua.
Sendo por definição tradicional uma criatura, o Homem não pode ser, simultaneamente, um criador. Tal condição permite-lhe unicamente recriar, a partir dos procedimentos canónicos de um magistério, ou seja: operar de acordo com um código magistral, inscrito no próprio mistério da Criação.
Esta unicidade original das artes manipuladoras permite-nos aproximar a prática alquímica de qualquer outra prática operativa, dentro do contexto geral da Arte Real, nas suas múltiplas vertentes e aplicações. Pelo seu carácter extremamente sumário, o presente trabalho procura constituir um estimulo ao estudo mais aprofundado da questão, tendo em conta que o mais importante não é a multiplicidade das artes, mas a raiz primordial que as suscita a todas.
Carcavelos, Maio de 2000

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