sábado, 10 de abril de 2010

A propósito da exposição de Carlos Dugos, designada «Vieira – O Verbo e a Luz», no Mosteiro dos Jerónimos

Foi nos finais de Outubro de 2007. Num declinar de tarde. Procurei-o no seu atelier de Artista, em Matarraque, freguesia de São Domingos de Rana. Levava-lhe uma proposta da Comissão Organizadora de “2008 Ano Vieirino, Comemorações do IV centenário do nascimento do Padre António Vieira (1608 – 2008)”. Carlos Dugos titubeou escusas: que, por certo, outros pintores haveriam capazes de incarnar a missão plástica de trazer Vieira à substância e luz da pintura; mas acabou por aceitar o desafio que, volvido quase um ano de intenso labor, hoje se consubstancia neste novo ciclo da sua Pintura, a que deu o nome «Vieira – O Verbo e a Luz».
Ao longo desses meses, esparsamente o fui visitando na expectativa de uma nova revelação que, afinal, sempre me veio: nas conversas acesas sobre aspectos múltiplos da vida e obra de António Vieira, cujos textos ele lia, ou relia, no silêncio meditativo do atelier cada vez mais preenchido da presença do insigne Jesuíta; e nos esboços, estudos preliminares das telas e desenhos, sempre num entusiasmo comunicativo que, a par e passo, ia de mãos dadas com a gesta das ideias e a alquimia da criação plástica.
Carlos Dugos prolonga neste novo trabalho a metafísica do Pintor, que já revelara em ciclos anteriores, intérprete da Memória nacional, da Portugalidade e da linguagem simbólica em que estas matricialmente incarnam, vivamente estimuladas agora pela imagética barroca vieirina e pelo visionarismo teatral das convicções mítico-proféticas de António Vieira.
Nas telas que o Pintor expõe, a inspiração temática não se restringiu ao sonho quinto-imperialista de Vieira com as suas insinuações sebastianistas e repercussões joanistas, porventura a parte mais popularmente conhecida da obra vieirina e, por isso, aquela que por força e projecção culturais natural e mais facilmente atraíram o projecto de reconstruir pelo discurso pictórico o essencial da mensagem de Vieira. Mas, como bem nota Carlos Dugos na proposta que ora nos divulga, não está nesse essencial a totalidade de António Vieira.
Ao compreendê-lo, ansiou a navegação por outros mares, afrontou e saboreou a plasticidade dos seus sermões, escutou o verbo da oratória sacra neles vivo (este fascínio está presente no «Retrato de Vieira») e repercutiu-lhe a luz em quadros tão extraordinariamente belos como a «Vigília de St.ª Teresa d’Ávila», exemplo maior da transposição do discurso metafórico de Vieira para a tela, e «O Naufrágio», que se inspira no «Sermão de santa Teresa», de 1654, pregado no Colégio da Companhia de Jesus, em Ponta Delgada, onde o Jesuíta rememora o naufrágio ao largo dos Açores, que é agora, no quadro de Dugos, representação dos outros tantos naufrágios que sofreu na constante aventura de cruzar os oceanos.
Além desta página trágico-marítima, a cujas sugestões pictóricas foi sensível o Artista, atraiu-o igualmente o texto sublime do «Sermão de Nossa Senhora do Ó», exemplo maior da teologia mariana em Vieira e do seu fervor a Maria, que está na base do mais formoso quadro desta série pela intensidade narrativa que concentra: a Expectação da Senhora, a Alegria mística do seu olhar, a Fonte de Graça viva em gestação e a antecipação do divino Nascimento.
O círculo, que é o ventre da Senhora do Ó, é um símbolo da teandria, cujo maior mistério está em ser um finito Ó a abranger o infinito que é Deus, alfa e ómega. A selecção deste sermão é inspiradora para toda a linha figurativa e temática da Exposição, pois que, sem fechá-la nos circunstancialismo da história dos homens, a abre ao conjunto de motivos teológicos que transformam o tempo humano em Tempo e História divinos. A Encarnação passa, por esta tela, a ser o facto central da própria Exposição, como se aquele Sol humano-divino em que se recorda a Senhora cingisse, a auras de luz, o grupo das telas, assim justificando, pelo supremo fundamento da teandria, o retábulo dos diversos temas, não só o mais evidente de «Os Reis Magos do Oriente e do Ocidente», mas também os que alegorizam o reino Universal dos Portugueses, cuja verdade nos encaminha para o Reino do Unigénito, inconcebível sem o instante encarnacional, que funda o Milenarismo, revela o Espírito Santo e anuncia o Regresso do Salvador.
Este movimento de fundação, revelação e anunciação está em Vieira e sobre ele se constrói parte notável da sua unidade discursiva. O Pintor não teve que construi-la. Teve, porém, que vivê-la. O extraordinário é que a tivesse surpreendido e compreendido, propondo-a pela leitura que fez da Expectação da Senhora. Compreendamos, pois, o grau de dificuldade da estratégia plástica de Carlos Dugos, cujo entendimento depende do nível conceptual em que ele próprio se colocou e atingiu pelo inegável talento do pensador que também é.
Ao invés de ter estanciado apenas nos graus simbólicos do quinto-imperialismo de Vieira, cruzando as rotas do messianismo político, ou de ter-se imbuído das sugestões biográficas da sua vida missionária no Brasil, talvez as vias mais comuns de aproximação ao Jesuíta, não cedeu a tal facilitismo, mas mergulhou a fundo na filosofia e na teologia de António Vieira. Conservando aqueles aspectos de forma directa (ver «O V Império e as Quatro Idades Clássicas», «Conversação das Tribos Perdidas» ou «O Regresso de Dom Sebastião», para o messianismo político) ou indirecta («O V Império», tríptico que presentifica o Velho e o Novo Mundo), Carlos Dugos não perdeu de vista a instância metafísica de fundação que lhes é própria, peculiar de Vieira.
A coerência do projecto e a unidade temática da Exposição que nos patenteia vivem do entendimento conceptual do discurso vieirino, de que efectivamente foi capaz, que permite dizer que até o messianismo político que interpreta é mais do que político; é isso e algo mais, estando neste algo mais tudo o que propriamente vale e melhor vale, que ultrapassa a caducidade das formas históricas e as liberta pelo sentido futurante do desejo, que permite ainda hoje pensar universalmente a Portugalidade e querer mais e melhor Portugal.
É nesta inscrição ávida de futuros, que a António Vieira tanto pesou e que pensou, que se compreende que o Artista, relendo Vieira, não lhe seja, por vezes, inteiramente fiel, preferindo centrar-se na figura de D. Sebastião e não de D. João IV, por um regresso à leitura sebastianista do Bandarra, o Profeta do Portugal Restaurado, e preferindo seguir a linha figurativo-imagética do imaginário colectivo português, onde a supervivência do mito do Encoberto continuou, para lá de Vieira, a reflectir-se em El-Rei D. Sebastião, e não El-Rei D. João IV, como para Pascoaes, Fernando Pessoa, Agostinho da Silva, entre outros, aproando a essa outra verdade que floresceria nas idades seguintes: que o Rei-Saudade, o Rei-Encoberto, é o próprio Portugal.
Eis, pois, a reconstrução do mito do Desejado como a outra vertente da Exposição de Carlos Dugos. A profecia do restaurado é a mesma que a profecia da universalidade de Portugal, das suas capacidades construtivas e viris, que Camões, Vieira e Pessoa cantaram e exaltaram. A Portugalidade ressurge-nos na sua inteireza de desígnio seminal, essência da nossa memória colectiva, de profecia não cumprida, de um tudo quase nada e de um nada que é tudo, para glosar Pessoa e Agostinho da Silva, que permanece na inefabilidade da Saudade e vive na pedra dos nossos símbolos arquitectónicos nacionais, os que falam da grandeza de Portugal, tal o Mosteiro dos Jerónimos, onde esta Exposição de Carlos Dugos se oferece pela primeira vez ao público, entre 19 de Novembro e 5 de Dezembro de 2008.
Iniciativa da Comissão Organizadora das Comemorações, «Vieira – O Verbo e a Luz» ficará, estou certo, para o futuro como uma das expressões maiores em artes plásticas deste Ano Vieirino, que é organizado pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e o Centro de Estudos de Filosofia (CEFi), pela Faculdade de Letras e o Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, e pela Província Portuguesa da Companhia de Jesus.
Atendendo a que os temas e a congruência temática da Exposição se integram harmoniosamente nos objectivos da divulgação da Vida e Obra de Vieira pela Comissão Organizadora, quis esta dar-lhe devido realce no quadro do Congresso Internacional - «Padre António Vieira: 1608 – 2008 – VER, OUVIR, FALAR: O GRANDE TEATRO DO MUNDO» – com lugar, entre os dias 18 e 21 de Novembro de 2008, na Universidade Católica Portuguesa (Campus de Lisboa) e na Universidade de Lisboa (Faculdade de Letras).
Resta-lhe agradecer ao Ministério da Cultura, na pessoa do Senhor Ministro Dr. José António Pinto Ribeiro, e à Direcção do Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém, na pessoa da Senhora Directora Dr.ª. D. Isabel Cruz de Almeida, o apoio recebido, mormente a cedência da magnífica sala do antigo refeitório do Mosteiro dos Jerónimos para receber a Exposição.

Lisboa, 10 de Novembro de 2008.
MANUEL CÂNDIDO PIMENTEL
(Presidente da Comissão Organizadora de 2008 Ano Vieirino)

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