domingo, 11 de abril de 2010

A pintura de Carlos Dugos

Excerto de uma conferência feita pelo escritor, crítico de Arte e pintor Jorge de Guimarães, para o lançamento do álbum “Jogos Reais”, no Museu da Água, em Lisboa, em 2002.



Quando me convidaram a falar sobre o Pintor e Filósofo Carlos Dugos, concretamente sobre a sua Pintura, outro-tanto é falar da sua filosofia, tratando-se para mais de alguém que concomita as suas linhas de Pensamento com os trabalhos da sua inspiração – estava eu muito longe de supor o beco sem saída em que me iria meter.

Porque conhecendo imperfeitamente a pintura de Carlos Dugos, a poderia aprofundar e estudar através da análise das obras agora e aqui apresentadas, cingindo-me ao que sempre faço quando se trata de analisar pintura: lê-la. Ler um quadro, em termos formais, iconográficos, ou de data e modo (século, movimento ou escola) tem sido para mim a “vida real” de falar de alguém que pinta, ou da obra pintada de alguém. E aqui me permito acrescentar que nem julgo necessário um alargado número de obras para se avaliar um pintor: se bem vista, sendo ela ampla, uma chegará. Tal como nos museus: prefiro nessas casas, que tanto por vezes se assemelham a hotéis onde estão vivos os pintores já mortos, como a cemitérios onde estão bem mortos os pintores ainda julgados vivos, que ver um quadro ou dois me chega: pois que mais complexa tarefa do que esta de VER? E de ver um quadro? De vê-lo com olhos de ver, de sentir, de lembrar, de saber, de compactuar. E como, a ver assim, se poderá ver num só dia mais do que um quadro ou dois? É claro que há pintura que se pode ver por centos, mas essa basta olhá-la. Devo aqui confessar, para que melhor me possam compreender e perdoar, que a pintura me é como os livros: ao pegar em Tolstoi, o Liev, claro, que mais poderei ler de uma só vez do que três ou quatro páginas? E ficar depois, com o dedo a marcá-las, por tempos sem medida de minutos, a pensar o que li? Assim são os anos.

Mas, disse eu, mal sabia, pobre de mim, em que labirinto, no senso daquilo que aparentemente não tem saída, me ia meter. Explico. Como explicar as minhas explicações da Pintura, de natureza assumidamente simbólica, de Carlos Dugos, se Carlos Dugos, de uma forma absolutamente paradigmática, quadro por quadro, iconograficamente a explica, a decompõe, a inventaria, a analisa? E fá-lo com toda a autoridade de ser o seu autor, e fá-lo com toda a sapiência de, nessa filosofia, ser o seu próprio filósofo! Sendo assim, eu encontrar-me-ía na insustentável exposição de, ao tentar explicar o que Carlos Dugos pintou e explicou, ter de me repetir na sua própria explicação…

Como se vê é muito limitado o meu campo de manobra… Porque, a avolumar ainda todo este acervo de dificuldades, subsiste ainda aquela terrível, e para mim absolutamente embaraçadora, para não dizer vexante, de que tudo aquilo que Carlos Dugos invoca como sustentação das ideias dos seus quadros o faz de um modo tão cabal e tão brilhante, que tolo será aquele que nessa matéria o pretenda dizer melhor! Nomeadamente, nas aparentes discrepâncias, usuais, que sempre existem entre as intenções de quem faz, e as explicações que o mesmo diz, há por vezes saltos, lacunas, assimetrias… - Qual nada!! Aqui, neste aprofundamento que Mestre Dugos faz dos conteúdos das suas obras, tudo me parece correcto, e certo, porque tudo está conforme a um pensamento, a uma filosofia, que tanto se engendrou nos caminhos da história, como nos do mito, como nos da cosmogénese, como nos próprios passos do mesmo percurso vivencial, e autobiográfico e confessional – do próprio Mestre. Mas não se ficam por aqui as minhas desconcertantes desventuras de comunhões e aceitamentos: imagine-se que Carlos Dugos, com a limpidez que só um filósofo tem, tudo aquilo em que nesta matéria eu creio, e creio-o por observação e sofrimento próprio, na apreciação crítica que faz ao panorama grosso modo da pintura do século XX: transformaram os senhores estruturalistas, porque isso lhes dava jeito às ideias, que as artes, como superestruturas, deveriam ser dialécticas e progressivas, e assim, que quem pintava, deveria ultrapassar o que ontem tinha sido pintado, e assim amanhã, e depois de amanhã, e para sempre. O resultado está à vista: os próprios fogueiros da locomotiva da dialéctica, que conduziu o comboio do Progresso, o anunciaram já: a pintura acabou. Acresça-se que realmente a pintura acabou, mas justamente “essa pintura”, que apenas visava, no cumprimento “dessa dialéctica e desse progresso” a sua revolução permanente, contínua, embora não eterna, porque finalmente paralizável na sociedade perfeita, e futuramente cantante. Claro que a pintura, que “é tão velha como o homem", não se poderia exaurir, gastar, em meia dúzia de anos, com meia dúzia de senhores e com meia dúzia de conceitos construídos em telhado sem o apoio das paredes. Muito melhor do que eu, o disse Carlos Dugos em A ARTE E O JOGO: REALISMO REALIDADE E REALEZA.

Mas se me foi condicionado o discurso pela inteireza dos outros dois discursos do autor aqui celebrado, resta-me pelo menos a vivaz alegria de poder fazer a renda de bilros das palavras que exaltem justamente, e isto quase poderia parecer ironia, se ao Mestre Dugos não se soubesse quanto me liga o maior respeito que lhe tenho como homem e artista que pensa, a beleza formal, a sujeição dos meios plásticos com que ele se exprime nos seus quadros.

São leves os seus pincéis, diáfanas as suas atmosferas, sentidas, por vezes até à dolência, as suas cores, certas as suas composições. E aqui me devo quedar para sublinhar a importância do dito. O pintor, neste caso – como também genericamente o artista, tanto a arte actual consagra na mesma obra, por vezes, diversas disciplinas ou formas materiais de expressão – usa, dizia ou o influxo da sua inspiração, como que permanentemente se remetendo para os insondáveis abismos do seu Inconsciente, ou se trajecta através de uma ideia, pelos filtros de uma filosofia, com os testemunhos vivenciais da sua cultura e da sua formação humana, criando, desenhando, eu diria mesmo, designando, uma obra, um quadro, que perfaçam esse momento do seu pensamento, em simbiose perfeita com a sua emoção. É, nestes tempos de aceleração entrópica, um feito muito raro, ser-se assim. Isto é, se mo permitem: pintar e pensar, exprimir-se não atrabiliariamente mas de forma sistemática e objectiva, em suma, ter ideias e ser capaz de as exprimir em pintura sem que elas se tornem meras, ou apenas, ilustrações sem vida, dum pensamento qualquer. A iconografia, em pintura, está hoje remetida para aqueles tempos em que ainda ao Pintor lhe era permitido pensar, sem que, com isso se desinspirasse. Mestre Carlos Dugos, que não o é apenas de ofício, mas sobretudo de exegese espiritual, consegue adequadamente concomitar esse tremendo “Exploit” de pensar e de sentir com a mesma elevação e inspiração.

1 Referência a uma entrevista feita a Carlos Dugos pelo historiador de Arte Jorge de Matos acerca do ciclo de pinturas designado por “Jogos Reais”, onde se abordava a temática da Cavalaria Espiritual

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