domingo, 11 de abril de 2010

AVE – EVA
O ETERNO FEMININO

Algumas considerações sobre um conjunto temático de pinturas.

Depois de concluído o ciclo de pinturas “Jogos Reais” – ensaio pictórico sobre a Realeza e a Cavalaria espiritual – começou a desenvolver-se um conjunto de ideias que, partindo desse tema anterior, incidiu particularmente sobre a relação metafísica entre mulher e homem.

A investigação e os estudos preliminares que se seguiram foram, desde o início, baptizados com a designação genérica de “O Eterno Feminino”. O termo foi tomado de Goethe, a propósito do seu Fausto, especialmente do segundo, que termina com as palavras salvadoras de Margarida: “Vem, lança o teu voo para as altas esferas.” Encontramos aqui o tema recorrente da mulher como elemento salvífico, ou como directa representante da anima humana, cuja pureza se constitui em força capaz de içar para o alto, por um acto de alma e de amor, o amante caído na cilada de Mefistófoles. A este propósito, refira-se o quadro “Margarida e Fausto”, tratado em termos de um nocturno, onde a mulher luminosa e alada arranca, do atoleiro da dualidade, uma estátua de herói enegrecida. E o esforço desta Margarida processa-se a partir de um plano horizontal; no entanto, o destino do gesto é um céu estrelado.

Como parte cindida da unidade humana original, a mulher conservou características particulares reportando-se às especificidades femininas do ser primordial. Essas particularidades, que constituem a identidade feminina por excelência, revelam-nos um “alguém” – individual ou colectivo – que em nada se assemelha à “cidadã”, assimilada ao padrão masculino e com ele identificada, numa tendência uniformizante, com aspectos verdadeiramente promíscuos, segundo a imagem que se tenta estabelecer, publicamente, da mulher actual.

Nesse sentido e associado à designação de “ Eterno Feminino” para o presente conjunto de trabalhos, surgiu o anagrama AVE-EVA, saudação à sublime natureza feminina, mas escondendo, foneticamente uma ideia de algo perdido, que já não há, quando pronunciado em italiano – “aveva”, pretérito do verbo avere, apetecendo acrescentar; non ha piú. Longe estava, então, de imaginar que essas pinturas seriam apresentadas em Itália.

Nesta nova condição que o mundo lhe tenta impor, a mulher não será já a reserva anímica da humanidade, tanto na sublimação angélica da amante afrodisíaca, como na dádiva demétrica no altar da família, para se tornar na amazona, reflexo feminino de um impulso titânico, trazendo em si os sinais de monstruosidade, característicos de uma natureza ciclópica e alterada. Apesar disso, na pintura “Amazona” é ainda a generosidade quase sorridente que banha o rosto daquela que, de modo ambíguo, aperta ainda, contra si, o elmo clássico do combate.

Em algumas das pinturas integrantes do ciclo “O Eterno Feminino” o tema da nostalgia – ou até da saudade – remete invariavelmente para as relações homem mulher, aqui sempre marcadas pela grande ausência do primeiro, cuja manifestação, em forma de estátua ou baixo relevo, contrasta com a realidade carnal e palpitante da mulher, reforçando a ideia de um princípio que, não estando propriamente morto, jaz no panteão da memória residual, onde o elan vital se perdeu, ficando apenas a imagem imobilizada do ser – sendo – masculino.


Nesse sentido releva a pintura “Saudade”, em que a ninfa contempla nostalgicamente o guerreiro, cristalizado no seu cárcere de pedra, sujeito à corrupção ácida do tempo. Do mesmo modo, em “O segredo da viúva”, o pedido de auxílio é dirigido a César Augusto, um homem – deus do qual não resta mais que a estátua, inerte no gesto suspenso e animada por uma fosforescência espectral.

Nesta linha, poderá ainda incluir-se “Amazona Conduzindo Um Centauro Cego” onde a “cegueira” que domina o homem-animal, entregue aos seus instintos primários, torna a cavaleira dominadora, na viagem pelo caos indiferenciado sobre – ou sob – o elemento húmido.

O carácter indissociável do conjunto macho – fêmea, obriga a um destino comum e reflexo. A ausência de manifestação do princípio masculino, no esplendor das suas qualidades transcendentes, conduz a mulher à tribulação, à viuvez espiritual e ao desespero de uma solidão sem recurso nem paliativo, mesmo quando anestesiada pelas aliciantes alternativas com que a modernidade procura disfarçar esse vazio abissal.

Neste aspecto é sintomática a inquietação iniciática dos sectores femininos mais atentos que, buscando a integração numa linha tradicional, tentam estabelecer-se nas iniciações vocacionais masculinas, particularmente na iniciação à “Pedra”, julgando poderem aí encontrar uma verdadeira via que as sirva e a que possam servir.

A grande iniciação feminina não é à “Pedra” mas à “Carne”, esta entendida no sentido mais profundo da realidade. Com efeito, o protótipo genérico ocidental da iniciação feminina está em Ariadne e não em Hiram.

A urdidura do tear é, também, a tecelagem da vida. Essa aptidão para tomar a linha vertical, oriundo do espírito, transportando em si o princípio vital e para a cruzar, por um “nó”, com a linha horizontal, em que se exprime carnalmente a possibilidade plástica das coisas, constitui o verdadeiro suporte operativo de uma tradição iniciática feminil, porque nele se exprime a extraordinária capacidade de transpor o espírito em carne, mistério exclusivo e privilégio único da fêmea.

Ilustrativa desta convicção está a pintura “Ariadne”, em que a deusa cretense se entrega ao magistério do seu rito, tecendo a estrutura labiríntica da vida, sob os auspícios da aranha e da Lua seus emblemas míticos. E está também o quadro “Maternidade” onde o infante que repousa nos braços da mãe, se constitui num simples registo de luz, a manifestar-se, por ela e através dela. Na “Anunciação” é a surpresa pela súbita presença do turbilhão volátil, ou o pressentimento difuso de uma intensa felicidade, que iluminam o rosto da mulher. O acto da leitura suspenso e o livro entreaberto remete para o mistério meio desvendado.

Nesta série de trabalhos, o recurso à citação corresponde ao estabelecimento de uma linha cultural própria do Ocidente, já que a génese da problemática que aqui é representada, constitui um desenvolvimento progressivo das contradições desta cultura.

Assim, peças da estatuária clássica, grega ou romana, bem como fragmentos de pinturas europeias complementam a disposição cénica das personagens, seja pela rigidez da pedra, nos casos da escultura greco-romana, por exemplo nos quadros “Saudade”, “Eros e Afrodite”, “Margarida e Fausto” ou “O Segredo da Viúva” seja pela fluidez da pintura como no caso do “Banho Turco” de Ingres, em "Ninfas junto ao Mausoléu de Pã”, ou o Adão de Miguel Ângelo, frente a uma Eva que é o seu reflexo, em “O Fruto do Conhecimento”.

Rápida passagem por alguns dos aspectos fundamentais do tema geral, estas quinze telas correspondem a um breve ensaio sobre aquilo que há de eterno e intemporal na condição feminina. Nos aspectos mais sublimes dos seus triunfos, encontramos a “Madona com Cálice”, em que o vaso sagrado se encontra à sua guarda, sob a vigilância de um elmo que garante a indispensável incógnita, embora se apresente em posição de realeza. Esse triunfo exprime-se também no quadro “A Dama da Rosa de Ouro”, em que a jovem princesa ostenta o seu galardão. Com efeito a Rosa de Ouro é uma insígnia honorífica com que o papado agracia figuras femininas de estirpe real que se distingam pelas suas virtudes. Na queda petrificada da mulher o exemplo está sobretudo em “D. Juan – Petrificação”, em que a amante é contagiada pela tendência do amado, para o sentido substancial quantitativo e petrificante da realidade.

Carcavelos Abril de 2002
CARLOS DUGOS

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